No último mês, o glifosato, molécula presente em herbicidas, foi alvo de uma polêmica. No dia 3 de agosto, a juíza federal substituta da 7ª Vara Federal do Distrito Federal, Luciana Raquel Tolentino de Moura, determinou a suspensão do registro de produtos à base de glifosato, abamectina e tiram (substâncias também encontradas em agrotóxicos).
Ao acolher uma ação do Ministério Público Federal (MPF), a juíza entendeu que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estava demorando para concluir os procedimentos de reavaliação toxicológica desses produtos.
A decisão não proibia, naquele momento, a venda de agroquímicos à base de glifosato, mas impedia registros de novos produtos. Após 30 dias, entretanto, a sentença determinava que o registro de todos os agrotóxicos com essas substâncias seria suspenso, ou seja, o uso estaria proibido, de acordo com a legislação brasileira. A agência teria até 31 de dezembro para concluir os estudos.
Repercussão
Após a decisão da Justiça, entidades do setor rural alegaram que, sem o glifosato, seria inviável manter o plantio das principais culturas do país. O ministro da Agricultura, Blairo Maggi, reforçou o argumento. “É muito importante dizer: não há saída sem o glifosato; ou não se planta, ou se faz desobediência da ordem judicial”, disse, ao afirmar que a proibição impediria o cultivo de 95% da área de soja, milho e algodão, três dos principais produtos do país.
No dia 23 de agosto, Maggi chegou a dizer que uma liminar havia cassado a suspensão. No dia seguinte, o ministro voltou atrás e pediu desculpas pelo equívoco. A suspensão ainda estava de pé.
Questionada pela GLOBO RURAL, a Anvisa comentou a decisão da juíza. Para o órgão do Ministério da Saúde, a análise toxicológica dos agrotóxicos é complexa e, por isso, leva tempo.
No dia 3 de setembro, o presidente em exercício do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1), desembargador Kássio Marques, derrubou a liminar. Uma de suas alegações foi que “nada justifica a suspensão dos registros dos produtos” sem a “análise dos graves impactos que tal medida trará à economia do país”.
Na prática, portanto, substâncias à base de glifosato não deixaram de ser comercializadas ou usadas no campo. Mas a polêmica suscitou um debate: por que o glifosato é essencial para a manutenção do modelo atual da agricultura brasileira?
Dias antes da derrubada da liminar, GLOBO RURAL conversou com José Otávio Menten, professor sênior e pesquisador da Esalq-USP para entender a questão.
Lecionando na faculdade de Piracicaba desde 1985, Menten atua no Departamento de Fitopatologia e Nematologia. Entre suas áreas de estudo, estão a patologia de sementes, o controle de doenças de plantas, fitossanidade e a resistência de plantas a patógenos, entre outras.
Com 47 anos de atividade profissional na área, Menten também trabalhou no Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e na Embrapa. Ele argumentou que, além de ser essencial, o glifosato ainda mudou radical – e positivamente – a agricultura brasileira.
Origem do glifosato
“O glifosato surge numa época em que havia um grande empenho da agricultura para encontrar novas ferramentas para o manejo de pragas”, diz Menten. O professor destaca, porém, que o glifosato, que apareceu pela primeira vez no produto Roundup, da americana Monsanto, surgiu para ser uma ferramenta a mais.
“Sempre se propôs o uso do manejo integrado, ou seja, usar todas as medidas para manter a população de pragas agrícolas abaixo do nível de dano econômico”. Entre as várias medidas, como a rotação de culturas e os métodos biológicos, estão incluídos também os produtos fitossanitários. “Quando as outras medidas não estão atuando da maneira adequada, se faz uso desses produtos. Eles só são utilizados quando são realmente necessários”.
Hoje, existem mais de 100 marcas que utilizam o glifosato como ingrediente ativo, porque a Monsanto não detém mais a patente. O Roundup, entretanto, foi uma grande novidade na agricultura quando foi lançado em 1974.
Disseminação
Menten explica que o produto deu certo e foi muito disseminado porque, “além de ser extremamente eficiente, o glifosato tem baixa toxicidade em relação a outros produtos. Ou seja, do ponto de vista toxicológico, o risco é baixo. Não foi por uma questão de preço, porque ele não era barato. O preço só despencou após a quebra da patente”.
O processo de quebra de patente do glifosato foi disperso, variando de acordo com o país. No geral, os pedidos começaram na década de 1980, mas, com os recursos pedidos pela Monsanto, empresa hoje pertencente à Bayer, os processos se arrastaram durante anos. Nos Estados Unidos, a última patente do glifosato caiu no início dos anos 2000.
Entre herbicidas, inseticidas, fungicidas e outros produtos fitossanitários, o glifosato é a substância mais utilizada no Brasil. Menten argumenta que um dos fatores para o uso disseminado foi o fato da substância ter sido responsável por um dos maiores avanços da agricultura do ponto de vista ambiental.
“O glifosato chega em um momento em que nós estávamos procurando aprimorar os processos produtivos. Esse aprimoramento foi deixar de lado a aragem e o gradeamento, técnicas que tinham como um dos principais objetivos o manejo das plantas daninhas. Ao deixar de lado essas técnicas, usando o produto químico, foi possível a ampla utilização do plantio direto”.
Do ponto de vista ambiental, Menten considera que o abandono dessas técnicas foi um ótimo negócio. “Nossa maior mazela ambiental sem dúvida alguma é a erosão. E com o plantio direto, reduzimos significativamente a erosão nas áreas agrícolas”.
Na década de 1990, cerca de 20 anos após o lançamento do glifosato, surgiram as primeiras variedades transgênicas resistentes ao produto. “Isso trouxe mais uma grande vantagem. Eu posso aplicar o produto nas culturas e ele controla as plantas indesejadas, que costumamos chamar de daninhas. Eu não preciso tomar o cuidado de evitar que a soja, por exemplo, receba o produto, porque os mecanismos genéticos da planta, desenvolvidos através da transgenia, fazem com que ela fique insensível e não sofra o dano do herbicida.”
Isso quer dizer, então, que o glifosato chegou a ser aplicado em sementes convencionais? “Sim. Mas a semente era suscetível ou sensível ao glifosato. A aplicação era diferente: era preciso ter cuidado para que o produto não entrasse em contato com a semente.”
A semente transgênica foi, também, uma grande revolução, segundo Menten. “Antes, a aplicação tinha um custo maior. As sementes transgênicas facilitaram muito a aplicação, com um preço mais adequado, sem necessidade de grande tecnologia ou equipamentos apropriados para evitar o contato do glifosato com a planta, seja ela soja, milho ou algodão.”
Manejo integrado de pragas e aumento da resistência
Apesar das melhorias que trouxe à agricultura brasileira, o uso de produtos à base de glifosato sempre precisou seguir normas e recomendações rígidas. Uma delas é o uso como parte das técnicas do manejo integrado de pragas. Segundo Menten, essas regras de aplicação nem sempre foram seguidas, o que causa, hoje, uma preocupação entre agricultores, indústria e academia: o aumento da resistência de plantas daninhas ao glifosato.
“Talvez pela falta de assistência técnica, ou de uma extensão rural mais efetiva, não se seguiu a recomendação de produtores de herbicidas e sementes, mas principalmente da academia. As premissas eram muito claras: se aplicássemos os produtos de maneira inadequada, a possibilidade de surgir linhagens resistentes era muito grande.”
Menten reforça que essa premissa vale para qualquer agroquímico, não só para o glifosato. A ideia é a mesma para fungicidas, inseticidas etc. Um exemplo de aplicação inadequada é utilizar, seguidamente, o mesmo ingrediente ativo.
“Nós sabíamos que dentro da população de uma planta sempre existe uma porcentagem mínima de mutantes resistentes a qualquer pressão de seleção. Então sempre se falou: aplique uma vez um produto, mas na próxima vez, aplique outro. Dificilmente o mesmo indivíduo vai ser resistente a dois ingredientes ativos diferentes. Aquele que eventualmente fosse resistente ao glifosato, seria sensível ao outro. A recomendação da utilização desses produtos de forma adequada sempre foi feita. Infelizmente, nem sempre se seguiu. Isso foi um erro, que estamos enfrentando agora.”
Inviabilidade da produção
Menten reforça o argumento que, sem o uso do glifosato, não seria possível produzir em larga escala no Brasil. Isso porque seria necessário voltar às técnicas de aragem e gradeamento há muito abandonadas. Um hipotético cenário de proibição definitiva da substância “seria um retrocesso enorme para o Brasil. Não só para a agricultura, mas também para o meio ambiente. Toda essa área em que hoje se faz o plantio direto ficaria muito sensível à erosão.”
Mas isso em teoria, reforça o professor. Do ponto de vista prático, a produção seria inviável porque as fazendas não têm mais esses equipamentos. “Seria um caos, pelo menos nas próximas safras. Além de não ter esses equipamentos, a comunidade hoje não conhece mais essas técnicas. Seria necessário um treinamento sobre os novos procedimentos a serem adotados.”
“Se as coisas fossem preparadas com mais antecedência, a probabilidade de surgirem soluções mais adequadas seria maior, embora ainda assim difícil. Mas uma tomada de decisão assim, na boca da safra, causa uma insegurança e instabilidade enorme para o setor”, diz o professor.
Em agosto, a Monsanto foi condenada pela Justiça dos Estados Unidos a pagar indenização de US$ 289 milhões a DeWayne Johnson, um zelador de escola que teve contato com herbicidas à base de glifosato durante anos.
Johnson sofre de um câncer terminal e alega que foram os produtos que causaram seu linfoma não-Hodgkin. A Monsanto defende que autoridades de saúde nos EUA e na União Europeia não encontraram relação entre glifosato e câncer.
O professor Menten acredita que, se houvesse uma evidência clara dessa relação, o produto não teria sido aprovado pelos órgãos regulatórios brasileiros. “Eu falo dessa questão com as devidas precauções porque sou um engenheiro agrônomo, e não um médico toxicologista. Mas, como professor e pesquisador, com 47 anos de trabalho, estou sempre procurando ler sobre isso.”
O que chamamos no Brasil de “registro”, explica o professor, são uma série de estudos “cada vez mais rigorosos e exigentes” feitos pela Anvisa e pelos ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente para analisar se o produto em questão pode ser comercializado no país. Nesses estudos, se considera, entre outros fatores, os possíveis impactos ambientais e a toxicidade.
“Se houvesse alguma evidência clara que esse produto tem algum efeito carcinogênico, ou qualquer outro efeito prejudicial à saúde, ele não teria sido registrado ou já teria seu registro cassado. Isso, claro, parte do princípio de que o produto é aplicado da maneira correta”, diz Menten.
O pesquisador reconhece que existem trabalhos questionando esse pensamento, mas, em sua opinião, nenhum deles foi conclusivo e mostrou que existe um nexo causal entre glifosato e câncer. “O glifosato é menos prejudicial em comparação a outros herbicidas. Na classificação toxicológica, ele é considerado pouco tóxico. E claro, precisa ser usado adequadamente. Não se pode pensar em colocar uma dose que esteja totalmente fora da medida que é utilizada na agricultura.” (Colaborou Raphael Salomão)
Fonte: Globo Rural